K A I R O S
orbital building

Este breve texto é um fragmento do livro Kairos: Um Pássaro em Órbita do Planeta Terra - que será lançado em novembro de 2011. O livro levanta questões relativas ao conceito, o método do projeto, alguns elementos técnicos assim como muitas referências históricas.




BREVE CONCEITO


Possivelmente, a arquitetura nunca foi utilizada em projetos espaciais até o ano de 2011.
Coincidentemente, as obras de arte do passado estavam presas a um único meio. Elas poderiam ser pintura, escultura ou instalação, por exemplo, mas sempre estabelecidas em departamentos diferentes. A arte - agora e no futuro próximo - tende a ser uma única estrutura lógica presente em diferentes meios.
Também, de forma muito interessante, as obras de arte eram tradicionalmente classificadas como fenômenos desconetados da função. Tudo o que estivesse relacionado a qualquer tipo de função era imediatamente descartado como possível forma de arte. Até mesmo arquitetura e música não eram consideradas como formas de arte.
Mas agora, a arte acontece enquanto estrutura de pensamento na crítica da cultura, tomada no seu sentido mais amplo, atravessando diferentes campos do conhecimento numa abordagem transdisciplinar.
Assim, agora é impossível existir arte totalmente desligada da função, de qualquer tipo - como é impossível ser absolutamente desconetada de qualquer coisa.

 

Os antigos gregos tinham duas palavras para descrever a ideia de tempo: chronos e kairos.
Enquanto chronos significava tempo diacrônico, a passagem do tempo através de mudanças, kairos indicava a a antiga ideia de tempo profundo, que já era conhecida na Suméria, há cerca de cinco mil anos, pelo menos.
Os povos sumérios usavam o conceito de tempo profundo para descrever a natureza do Universo que pode ser identificada num piscar de olhos.
O fenômeno do tempo psicológico é suportado por mudanças, e nós comumente o chamamos de consciência. Não há tempo sem consciência, e apenas a diferença a gera.
O tempo profundo está presente em tudo, para além dos tempos cronológico ou psicológico.
Por exemplo: quando falamos sobre o antigo Egito, como um todo, não estamos tomando algo em especial. Ainda assim, temos a ideia sobre o assunto como um todo. É o mesmo sobre alguém que conhecemos, sobre uma fruta específica, uma descoberta ou mesmo sobre o nosso planeta.
Tempo profundo também poderia ser a primeiridade de Charles Sanders Peirce, ou mesmo ser chamado de qualia - conceito que curiosamente tem sido regularmente recusado por alguns filósofos contemporâneos.
Quando estamos no topo de uma montanha, ou quando perdemos alguém que amamos, temos isso: tempo profundo.
Agora imagine olhando para o planeta Terra, com os seus próprios olhos. Num tal momento você terá em mente toda a sua vida, a vida de milhões de pessoas, tudo condensado naquele piscar de olhos: tempo profundo.
É interessante notar por que os povos sumérios não possuíam uma ideia de espaço profundo, mas apenas a de tempo profundo.

 

Comecei a desenhar Kairos em 2008.
Tudo foi desencadeado num almoço com um bom amigo em Lisboa, Portugal, que me perguntou qual seria a próxima revolução na arquitetura.
Imediatamente, respondi: a gravidade!
Até agora, toda a história da arquitetura tem sido baseada na força da gravidade.

 

Basicamente, Kairos é um trabalho conceitual que funde desenho de arquitetura e projeto de arte num mesmo corpus - um ponto de passagem entre estética, função e tecnologia.
Sendo um projeto arquitetônico, ele apresenta desenvolvimentos estruturais em termos de função e desafios tecnológicos. Como obra de arte visual, atravessa todos os campos de ambientes e funções, projetando imagens inesperadas que são, ao mesmo tempo, abstratas e figurativas, lineares e não-lineares. Como obra de arte conceitual, ela questiona e critica o conceito de arte contemporânea e da cultura contemporânea em geral.

Kairos é, de fato, um edifício orbital - com um desenho conceitual transdisciplinar.
Como um observatório livre aberto a um grande número de pessoas, dedicado à sociedade civil, é um lugar para reflexão, contemplação, observação e mudança, desencadeando um processo de descoberta e formação de seres humanos - uma nova Paideia.
Assim, Kairos também pode ser tomado como um novo conceito de hotel, sob uma nova abordagem da educação - agora dinâmica e com prazer - dando uma nova dimensão ao chamado turismo espacial.
É um projeto para levar para o espaço sideral grupos de cientistas, filósofos, antropólogos, estudiosos, professores e estudantes das áreas mais variadas, promovendo um dinâmico processo transdisciplinar, transnacional e transcultural.

Agora, imagine um edifício orbital ao redor da Terra, aberto à sociedade civil de todo o mundo; um edifício projetado para a observação do nosso planeta; um lugar para contemplação, reflexão e criatividade.
Em alguns anos, uma nova onda de ideias estaria presente em todo o lugar, conetando pessoas de diferentes países, culturas, raças e religiões.
Ao mesmo tempo, imagine que esse edifício está intensamente conetado com vários lugares na Terra, através de sistemas de telecomunicações em rede e em tempo real, como a Internet.
E um edifício realizando um percurso orbital desenhado de forma a sempre o colocar fisicamente próximo de praticamente todos os lugares da Terra.

 

Certamente, alguns vão imediatamente considerar tal projeto uma utopia - no entanto, as utopias nunca são o impossível, mas sempre o que é surpreendentemente possível.
Arquitetura é o sutil equilíbrio entre função e desafiadoras estruturas de espaço, que desencadearão novas estruturas de pensamento numa dimensão não-verbal.
Arquitetura é processo.

 

Naturalmente, Kairos não é um completo projeto de arquitetura - trata-se de um estudo preliminar, e de um conceito.

Os interiores são articulados por paredes móveis, que por sua vez tornam possível o fácil redesenho de diferentes formas geométricas no espaço.

Outra característica muito importante do edifício é o seu desenho desprogramável. Por causa disso, todos os seus espaços podem ser rapidamente transformados de acordo com diferentes programas, para diferentes funções.
Assim, um mesmo espaço pode ser facilmente alterado para diferentes usos, dependendo do número e da qualidade das pessoas.
Ele também é um edifício que pode ser facilmente ampliado ou reduzido, com elementos de vedação articulados, feitos em tecido antibalístico flexível, e totalmente estruturado em módulos independentes que podem ou não ser interligados.

 

Ao contrário de praticamente qualquer espaçonave de qualquer natureza feita até agora, Kairos não é uma construção tubular.
Sistemas tubulares usados em naves espaciais nasceram a partir do desenho de mísseis, que deram forma aos foguetes, incluindo os tripulados. É o melhor desenho aerodinâmico para elementos viajando em alta velocidade num meio denso como o ar, mas certamente não o é para um lugar onde não há ar.

 

Diferentemente de praticamente todas as construções do espaço até agora, Kairos é feito em tecido flexível antibalístico, sendo cada módulo montado em três barras estruturais curvas.
Todo o material é levado para o espaço e montado nas barras estruturais. O material é leve e flexível até que seja montado.

As paredes são feitas em tecido antibalístico, em duas camadas principais, com água entre elas - também constituindo, desta forma, o reservatório de água do edifício.
A camada de água entre as paredes, para além de ser um importante reservatório para o edifício, também é uma excelente proteção contra raios cósmicos e representa um excelente fator endotérmico.
As diferenças de temperatura no espaço são tremendamente altas, porque não há fator de difusão, como o ar. Assim, nas faces voltada para o Sol, a temperatura é extremamente elevada, com o efeito oposto sobre as faces que estão na sombra.
A camada de água entre as paredes de tecido está interligada em todo o edifício. Desta forma, eles constituem um sistema de vasos comunicantes, equilibrando as grandes diferenças de temperatura. Quando não há gravidade, tal fenômeno dos vasos comunicantes é negativamente afetado, mas permanece o fato da expansão da matéria sob calor, e são previstos dispositivos mecânicos para aumentar a circulação de água no interior das paredes.
Aquela lâmina entre paredes permite o acesso à água em qualquer lugar do edifício. E a água parece ser o elemento básico da vida.

A face voltada para a Terra é feita com material transparente, mais frágil. As paredes duplas, com água no seu interior, constituem as outras faces. Este também é um detalhe estratégico do desenho, porque meteoritos nunca viajam contra a gravidade. Assim, o risco de choque de meteoritos contra a parede transparente é eliminado. Por outro lado, o desenho não elimina o risco de choques de detritos em órbita.

As três barras estruturais que formam cada módulo distribuem energia e informação ao longo das paredes. Desta forma, como o que acontece com a água, também energia e informação são facilmente acessadas em qualquer parte do edifício, tornando possível um eficiente desenho desprogramável.

O mais avançado desafio para a arquitetura é a gravidade.
Junto com a hípercomunicação, que inclui a realidade virtual - a gravidade é o signo por excelência de um novo salto civilizacional.

E gravidade também condiciona muito da nossa orientação sensorial no espaço.

Temos três elementos sensoriais de referência física para a orientação espacial: nossos ouvidos, nossos sensores localizados na região do estômago conetados à propriocepção e o nosso campo visual.
E temos três principais eixos visuais de orientação espacial: alto e baixo, direita e esquerda, frente e trás.
Quando uma pessoa está dentro de sistemas cilíndricos, ela perde dois dos três eixos visuais, perdendo consequentemente grande parte da orientação espacial.
Ambientes tridimensionais geométricos não-cilíndricos e não-tubulares podem gerar referências para o sentido vertical naturalmente estabelecido na Terra. De acordo com David Smitherman e Wallace McClure, da NASA Marshall Space Flight Center, "baseados nas experiências de astronautas dos Estados Unidos e da Rússia sobre o Skylab, a Mir e os ônibus espaciais, sabemos que algumas pessoas podem estar muito desconfortáveis sem uma referência vertical local, e pistas sutis deveriam ser mantidas nas zonas de acomodação de passageiros para melhorar esta circunstância fisiológica".
O dinâmico projeto arquitetônico de Kairos não privilegia ângulos retos - em noventa graus - que são típicos em praticamente todas as estruturas gravitacionais pós alfabeto de carga e suporte.
Contrariamente às estruturas tubulares, o projeto arquitetônico de Kairos permite a criação de todos os tipos de ângulos - e a criação de todos os tipos de formas geométricas tridimensionais. E, ao contrário dos espaços tubulares, dentro de Kairos podem ser facilmente projetados bem definidos espaços não-cilíndricos - mantendo ativos os três eixos visuais de orientação espacial.
Desta forma, ele torna possível a concepção no espaço interior do edifício claras formas geométricas rapidamente apreendidas e memorizadas pelas pessoas.
Theodore W. Hall alerta para o fato de que "sem uma referência gravitacional estável, tripulantes experimentam arbitrárias e inesperadas mudanças no seu sentido de verticalidade".
Possivelmente, a estratégia adotada em Kairos poderia minimizar esse efeito.
De acordo com o psicólogo espacial Philip Robert Harris, o "equilíbrio do sistema vestibular no ouvido interno é influenciado pela informação dos olhos; em gravidade zero o órgão vestibular deixa de funcionar no início porque a falta de gravidade envia sinais confusos sobre o que está para cima ou o que está para baixo, mas depois de dois dias em órbita o cérebro aprende a ignorar a entrada de sinais do sistema vestibular e aceita a informação dos olhos como a única correta; no retorno à Terra, os astronautas estão visualmente programados, e novamente são necessários dois dias para se readaptar e manter um o corpo na posição vertical - vendas nos olhos podem acelerar o processo".
Assim, com o desenho interior de Kairos, devido às grandes possibilidades criadas pelo seu sistema desprogramável, referências visuais podem ser facilmente trabalhadas para maior conforto dos visitantes.


Energia é um fator fundamental num edifício orbital.
A constante de fluxo de energia solar no espaço, e mais especificamente em órbita da Terra, é de pouco menos de 1400 Watts por metro quadrado. Esse valor equivaleria, num quilômetro quadrado, à energia de um reator nuclear!
Normalmente, esse fluxo contínuo de energia não está acessível aos satélites, porque grande parte deles não realiza uma órbita SSO Sun Synchronous Orbit. Assim, na maior parte dos casos, os satélites nem sempre estão diretamente expostos à luz solar.
Com a tecnologia atual, cada metro quadrado de painel solar é capaz de capturar até 100 Watts.
A Estação Espacial Internacional tem cerca de 110 metros quadrados de painéis solares, capturando cerca de 10 kW, ou 10 mil Watts, para seis pessoas - a tripulação da estação. A total capacidade energética da Estação Espacial Internacional equivale a cem lâmpadas de 100 W cada.
Cobrindo ambos os conjuntos, nas respectivas faces orientadas para o Sol, haverá grandes lâminas de acumuladores de energia solar, alimentando permanentemente o edifício. Entre as grandes lâminas de acumuladores e as respectivas partes do edifício haverá um espaço vazio como um dissipador de energia perdida e de raios cósmicos, criando um fator adicional de proteção do interior.
Cada módulo de Kairos terá cerca de 3.200 metros quadrados de painéis solares distribuídos em duas lâminas, ou duas seções de cada módulo. Eles gerarão cerca de 320 kW, trinta e duas vezes mais do que a Estação Espacial Internacional - apenas num dos seus módulos.
Se tomarmos a formação possível de cinco módulos, teríamos cerca de 1.600 kW por hora.
Entre as lâminas de painéis solares e o edifício haverá um espaço vazio para dissipação de calor. Dissipação sem atmosfera funciona de acordo com um princípio diferente: o da radiação.
O espaço vazio entre os edifícios e os painéis solares orientados para o Sol também funciona como barreira de proteção contra radiações cósmicas.
Kairos, tal como é definido no âmbito de uma SSO Sun Synchronous Orbit, possui uma contínua absorção de energia solar.
Tomando como referência a informação relativa ao consumo de energia na Estação Espacial Internacional, Kairos seria capaz de receber até cento e setenta e quatro visitantes de cada vez, apenas num módulo. Na sua formação de cinco módulos, Kairos poderia receber quase mil visitantes num mesmo momento!
Naturalmente, embora seja uma situação possível em termos da energia disponível, este não é um número razoável de visitantes quer pelo espaço interior do edifício, quer por motivos de segurança - mas, é revelador e intrigante em termos de energia.

 

Algumas pessoas têm questionado sobre uma conexão direta ao nível conceitual entre Kairos e obras de arte e ciência.
Trabalhar em arte e ciência não significa um campo ilustrando o outro!
É resgatar num desses mundos descobertas e insights que apoiarão o outro. É implantar revoluções metabólicas a partir de descobertas e insights.
Hegel argumentou que arte e ciência estão localizadas em polos opostos de um mesmo processo. Segundo ele, a arte partiria das leis para chegar às relações de qualidade; enquanto que a ciência partiria da qualidade, descobrindo e estabelecendo novas leis.
Arte e ciência significam lidar com leis e relações de qualidade num permanente questionamento filosófico.
Portanto, ciência não é engenharia, ou as chamadas ciências aplicadas. Da mesma forma que arte não pode ser compreendida como arte aplicada ou arte decorativa.
Tal como acontece com a arte, ciência também é filosofia - e esta é a ligação mais forte entre elas: estarem para além das leis e das qualidades.

Kairos não é apenas um projeto de arquitetura no antigo sentido da expressão. Tomando-o como um todo, na sua complexidade, para além de todos os desenhos arquitetônicos, imagens e conceito, uma série de obras de arte visual é produzida.
A abordagem paradoxal em relação às linhas curvas e retas, às curvas não-lineares, à proporção das dimensões humanas quebrada através do conflito de diferentes conjuntos de imagens, projeta uma série de desenhos que estão para muito além dos elementos e informações técnicas sobre o edifício.
Tais obras de arte revelam a fusão entre técnica e imagem, arte e ciência, numa série de desenhos que estabelece, ao mesmo tempo, uma profunda estranheza gerada por todos os tipos de conflitos visuais a um nível lógico, e uma forte ligação com o público - também devido à ordem oculta definida pelas proporções humanas e pelo sentido de unidade estabelecido entre todos os seus elementos estruturais.
Como um todo, o processo projeta novos complexos lógicos, para além dos tradicionais princípios hipotáticos - como aqueles presentes nos nossos sistemas predicativos de linguagem, verbal ou não-verbal.
Apenas a diferença gera a consciência.

Até hoje, desde o surgimento do primeiro hominídeo - há cerca de cinco milhões de anos ou mais - temos vivido um contínuo processo de expansão humana no planeta Terra.
Durante esse período de milhões de anos, certamente, o principal instrumento de expansão humana foi a guerra.
Agora, esse processo de expansão alcançou o seu limite. Hoje em dia, o ser humano já está presente em todos os pontos do planeta - não pode mais haver expansão. Então, depois de milhões de anos, uma nova lógica civilizacional seguramente substituirá aquele instrumento conhecido como guerra.
Não há mais lugar na Terra para a expansão humana, e este fato mudou as condições lógicas ambientais.
Ainda poderá levar algum tempo para que as guerras sejam erradicadas - ou para que uma devastadora guerra elimine boa parte da população mundial e restabeleça o antigo princípio da expansão humana. A ideia subjacente em Kairos implica considerar o primeiro cenário como verdadeiro.
A escala das relações humanas está definitivamente mudada.
Um novo processo de vida e de articulação social emerge como resultado do novo meio que é o planeta Terra.
Não seria isso exatamente o que John Wheeler, sempre brilhantemente, disse sobre a realidade como um Universo participativo em todos os seus níveis?
Tudo isso me faz lembrar John Cage quando dizia: "Eu nada tenho a dizer, e o estou dizendo, e isso é poesia".


 

A nossa pequena Nave Espacial Terra tem apenas treze mil quilômetros de diâmetro, o que é uma dimensão quase negligenciável na grande vastidão do espaço. (…) A Nave Espacial Terra foi tão extraordinariamente bem inventada e desenhada que para o nosso conhecimento os seres humanos têm estado nela ao longo de dois milhões de anos sem se dar conta de que estavam a bordo de uma nave espacial.

Richard Buckminster Fuller